VISÃO DUMA HUMANIDADE
COM A BOMBA ATÔMICA E SEM O CRISTO
UNIVERSALISMO
ADVERTÊNCIA
A substituição da tradicional
palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de
cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental –
mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da
Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para
outra existência.
O Poder Infinito é o creador do
Universo – um fazendeiro é criador de gado.
Há entre os homens gênios
creadores, embora não sejam talvez criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz
que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se
grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se
cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isto, preferimos a verdade e
clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
EXPLICAÇÕES NECESSÁRIAS
Aconteceu Entre os Anos 2000 e
3000 – Visão duma humanidade com a Bomba Atômica e sem o Cristo – é um opúsculo
de 32 páginas, formato 13,5 x 17,5, escrito em 1955 pelo filósofo e educador
Huberto Rohden.
O assunto do pequeno livro é a
celebração do advento da segunda vinda do Cristo ao planeta Terra, entre os
anos 2000 e 3000 de nossa Era. A história é uma fábula moderna contada com
simplicidade e dirigida a crianças e adultos de todas as idades.
O conciso texto estava fora de
circulação há vários anos, e como sempre constou da relação das obras completas
do autor, a editora recebia, anualmente, dezenas de pedidos do referido
opúsculo.
Esta Editora, cuja missão
principal é difundir as obras de Huberto Rohden, fica feliz em poder conservar
e oferecer aos seus leitores este pequeno livro que corria o risco de
desaparecer. Certamente não havia outro melhor lugar para ele tornar-se obra de
frequente leitura e garantia de perpetuidade redacional. Ganha o leitor, o autor
e o editor.
1. ERA PELO ANO 2000...
Andava a humanidade inteira numa
atividade febril, com grandiosos preparativos para celebrar condignamente o
ocaso do segundo e a alvorada do terceiro milênio da era cristã.
Eis senão quando, de improviso,
corre por todos os recantos do globo terráqueo a inaudita notícia do próximo
reaparecimento do Cristo sobre a face da terra! Ninguém compreendia bem o
processo como essa mensagem do além fora captada pelos laboratórios eletrônicos
do fim do século vinte; somente um pugilo de cérebros privilegiados estava a
par do enigma e afirmava com certeza categórica que o Cristo voltaria ao mundo,
visivelmente, no início do terceiro milênio, a fim de verificar o que os homens
que se diziam discípulos dele haviam feito do seu divino Evangelho.
Mal fora essa alarmante notícia
divulgada pela imprensa, pelo rádio e pela televisão, quando os chefes civis e
religiosos do ocidente cristão se reuniram em assembléia extraordinária, na
Capital Planetária, para deliberar o que convinha fazer em face de tão
inesperado acontecimento. Todos concordaram em que a situação era sumamente
crítica, espécie de terremoto, que poderia vir a abalar os alicerces de
instituições milenares.
Após prolongados debates,
decretou-se por unanimidade de votos que, pelo bem da paz e da ordem mundiais,
fosse impedida a invasão do Cristo em nosso mundo civilizado, sobretudo no
ocidente cristão, onde o perigo se apresentava mais agudo e funesto. No caso,
porém, que fosse de todo impossível frustrar essa entrada do Cristo em nosso
mundo – pois ninguém ignorava as forças estranhas de que ele dispunha – seria
nomeado um corpo de polícia e de detetives especiais para vigiar rigorosamente
todos os passos do perigoso intruso, a fim de evitar que pusesse em perigo, com
suas idéias revolucionárias, as respeitáveis instituições civis e religiosas da
civilização ocidental.
Mas, a despeito de todas as
medidas de precaução – eis que, na madrugada do dia 1º de janeiro do ano da
redenção 3000, aparece, em plena praça pública da Capital Planetária, uma
personagem estranha, que, sem tardança, foi presa pela polícia especializada e
levada às barras do Supremo Tribunal Mundial, para o competente interrogatório.
Exigiram do incógnito invasor a
exibição da competente carteira de identidade ou passaporte, mas ele não
possuía documento algum que não fosse ele
mesmo. Interrogado pelo
Presidente do Supremo Tribunal se ele era Jesus, o Cristo, fundador do
cristianismo, respondeu o recém-chegado:
– Sim, sou Jesus, o Cristo, mas
não sou o fundador do cristianismo a que aludes.
Perguntaram-lhe se ele era o
líder espiritual dos cristãos, ao que o prisioneiro replicou, com a mesma calma
e precisão:
– Eu sou o Cristo, mas não sou
cristão.
– Que vens fazer aqui na terra?
– Vim reafirmar o que afirmei no primeiro
século.
A essa resposta, um frêmito de
horror e indignação perpassou as linhas dos delegados dos Estados e das Igrejas
cristãs, que integravam a Assembléia Planetária.
– Mas não sabes, porventura –
exclamou um dos ministros religiosos –, que não estamos mais no primeiro
século? Não compreendes que as tuas idéias de então foram, há muito tempo,
superadas e modificadas pela civilização cristã de vinte séculos, e que nenhum
cidadão esclarecido da Era Atômica reconhece a praticabilidade das máximas do teu
Evangelho?
– Passarão os céus e a terra –
respondeu calmamente o interpelado –, mas não passarão as minhas palavras. Veio
ao mundo a luz verdadeira, mas os homens amaram mais as trevas que a luz,
porque as suas obras eram más...
Ouviram-se no seio da preclara
assembléia frêmitos de indignação, seguidos por um longo silêncio embaraçado.
Finalmente, um Promotor Público ornado de veneranda cabeleira e barba branca,
adiantou-se e, em tom amigável, disse ao Nazareno:
– Sugiro um acordo. Proclamarás
novamente o teu Evangelho, naturalmente sob o controle da nossa Comissão; mas
não repetirás nada daquilo que disseste no chamado Sermão da Montanha.
Compreenderás que esse documento é por demais incompatível com os elevados
padrões da nossa cultura e civilização ocidental. Se bem me recordo, exigiste
dos teus discípulos, entre outras coisas estranhas e revoltantes, que amassem
os seus inimigos e fizessem bem a seus malfeitores; chegaste ao ponto de dizer
que, se alguém nos ferisse numa face, lhe apresentássemos também a outra; e que
o homem, em vez de reclamar pelas vias legais uma túnica roubada, cedesse ao
ladrão também a capa. (Risadas sutis na assembléia). Ora, Jesus, todos nós
sabemos que tu és um homem inteligente e bem capaz de compreender que
semelhante filosofia é por demais fantástica, para não dizer positivamente
deletéria, não podendo ser divulgada em pleno século da eletrônica e da física
nuclear.
O orador abriu uma pausa, a fim
de dar ensejo ao acusado para se defender e definir atitude. Ele, porém, permaneceu
calado. Ao que o Promotor deu sinal a um dos secretários da Assembléia, o qual
deixou a sala e, dentro em breve, voltou carregando nas duas mãos,
cautelosamente, um objeto alongado, de cor escura, que colocou sobre a mesa. O
orador apontou para o estranho engenho e perguntou a Jesus:
– Sabes o que é isto?
E, como o interpelado continuasse
calado, o orador prosseguiu:
– Logo pensei que não o sabias,
porque no primeiro século não existia ainda essa maravilha da nossa ciência e
técnica. Pois saiba que isto é uma bomba atômica de hidrogênio. Não chega a
pesar 10 quilos, mas, se este aparelho for levado por um dos nossos aviões
teleguiados e solto sobre qualquer cidade do globo, não escapará um único ser
vivo, nem ficará de pé um só edifício – será tudo arrasado e totalmente
desintegrado na fração de um segundo. A nossa ciência bélica de hoje é benigna:
está em condições de matar milhares e milhões de seres humanos em menos de um
segundo, poupando-lhes todo e qualquer sofrimento, porque não sobra tempo para
alguém sentir esse aniquilamento instantâneo. Tu mandaste amar os inimigos para
acabar com eles – nós, porém, descobrimos um meio muito mais seguro e eficiente
para acabar de vez com milhares e milhões de inimigos nossos. É um processo
rápido e infalível, ao passo que o teu preconizado processo de acabar com os
inimigos amando-os é incerto e moroso, além de expor os teus discípulos ao
perigo de serem mortos por aqueles a quem não quiseram matar.
O orador tomou um gole d’água, ou
coisa equivalente, enquanto a assembleia apoiava vivamente as idéias expostas.
***
Nisto pediu a palavra um dos
maiores teólogos cristãos da época, cuja rigorosa ortodoxia era notória no
mundo inteiro. Disse:
– Para que não penses, Jesus, que
essas idéias sejam coisas de profanos, vou citar a opinião de um dos grandes
santos da nossa igreja, Tomás de Aquino; deves tê-lo encontrado no céu, onde
ele está desde o século XIII, conforme declaração oficial do magistério
infalível da nossa igreja.
O orador tirou das prateleiras de
uma biblioteca próxima dois alentados volumes, abriu-os em determinada página e
colocou-os sobre a mesa da assembleia, dizendo:
– Conheces a Summa Theologiae e a
Summa contra Gentiles do nosso incomparável Doctor Angelicus? Sei que não
costumavas ler nem escrever livros como nós; por isto vou explicar,
resumidamente o que o maior teólogo de
nossa igreja escreveu, em latim,
a respeito da proibição de matar. Em geral, diz ele, é claro que não se deve
matar ninguém. Mas, há casos em que matar não só deixa de ser pecado, mas até
se torna dever de consciência cristã, O nosso grande e santo teólogo especifica
quatro casos em que não é pecado matar outro homem, ou melhor, outros homens,
porque o número não modifica a espécie: 1) em caso de legítima defesa, 2) em
caso de guerra justa, 3) pode a autoridade civil condenar à morte os grandes
criminosos, 4) pode o magistério eclesiástico permitir que sejam punidos com a
morte os hereges impenitentes.
Que dizes em face disto? Negarás
que Tomás de Aquino tinha razão, tanto mais que sua doutrina foi repetidas
vezes aprovada e recomendada por nossa igreja infalível? Sei que no teu Sermão
da Montanha rejeitas categoricamente a liceidade do homicídio, em todos os
casos alegados; nem mesmo permitiste a Simão Pedro, nosso representante de
então, que matasse ou ferisse um dos teus injustos agressores, no Horto das
Oliveiras. Mas, em que iam parar as coisas se nós adotássemos a tua doutrina de
“não vos oponhais ao malévolo?” Preferimos à filosofia absurda do teu Evangelho
a política sensata de teu discípulo Pedro.
Não venhas, pois, proclamar
novamente princípios incompatíveis com milhares de grandiosas instituições que,
em teu nome, erigimos sobre a face da terra, nesses dois milênios de
cristianismo... Não exijas de nós que regressemos à obscuridade do primeiro
século; aceita antes as luzes do século vinte, que hoje transmitimos aos nossos
herdeiros do terceiro milênio.
***
O silêncio com que o Nazareno
ouviu tudo isto dava à assembléia a impressão de que ele estivesse
reconsiderando a sua atitude, disposto a mudar de idéias. Por isso,
levantou-se, finalmente, a maior autoridade em Ciências Econômicas e Sociais da
época e, aproximando-se do prisioneiro, disse-lhe em voz cariciosa e quase
suplicante:
– Escuta um conselho de amigo
sincero, Jesus de Nazaré. No tempo em que tu apareceste na terra reinava
violento conflito de classes e de raças. Havia muitos escravos e poucos
senhores, mas estes poucos oprimiam aqueles muitos. Os escravos não tinham
direito algum, mas tinham todas as obrigações; os senhores não tinham obrigação
alguma, mas tinham todos os direitos, até o de matar os escravos por simples
capricho. Tudo isto acabou em nossa sociedade democrática. Proclamamos a
igualdade dos direitos humanos. A humanidade de hoje é constituída de duas classes
apenas, mas ambas com os mesmos direitos: os exploradores e os explorados. Não
te escandalizes com estas palavras que uns chamam feias. É indispensável que
haja classes; do contrário, não seria possível o princípio da divisão do
trabalho. O principal é que ambos tenham os mesmos direitos essenciais e
eternos. Temos o cuidado
de frisar essa igualdade de
direitos, prometendo a ambos o reino dos céus. É esta uma das maiores
conquistas da nossa ideologia social cristã.
Aos exploradores prometemos-lhes
o reino dos céus, com a condição de que façam reverter parte do produto das
suas atividades para fins de beneficência ou religião; e eles concordam
conosco, entregando-nos regularmente boa porcentagem da renda das suas manobras
com a outra classe. São nossos amigos e benfeitores.
Aos explorados, porém, dizemos:
Aguentai por mais alguns anos os vossos sofrimentos e a exploração dos
poderosos! Sofrer é destino geral da humanidade... O sofrimento é a chave do
céu... “Bem-aventurados os que sofrem injustiças, porque deles é o reino dos
céus!” Quanto mais alguém sofre mais amigo é de Jesus, o rei dos sofredores...
Tereis como herança uma felicidade eterna, daqui a pouco...
Destarte, conseguimos narcotizar
a consciência dos revoltados, e eles se acomodam à situação, e até nos
agradecem a consolação que lhes damos.
Se não houvesse miséria social
não poderíamos exercer a caridade cristã, necessária para a salvação; por isso
criamos a miséria, a fim de podermos exercer a caridade.
Como vês, Jesus, conseguimos
equilibrar jeitosamente as duas classes de que se compõe a sociedade cristã do
ocidente: os exploradores e os explorados. Não venhas agora destruir com o teu
Evangelho o que nós construímos com a nossa teologia. Revolução não resolve
nada – o que vale é paciência e pacifismo.
Quieta non movere! – Não mexer no
que está quieto! Este provérbio antigo serve de norma às nossas atividades.
Deixa, pois, tudo como está para ver como fica...
***
Já parecia estar esgotado o
assunto, quando se levantou um homem venerando coberto de imaculada veste talar
de seda branca, e com tríplice coroa na cabeça, e, com voz e gestos lentos e
compassados, disse:
– Amigos e colegas. Peço vênia
para finalizar a questão central da nossa assembléia. Falastes da necessidade
de modificarmos o Evangelho do Nazareno em diversos pontos para o adaptarmos às
exigências vitais da nossa época, e excusado é dizer que concordo plenamente
com vossos critérios. Parece, todavia, que vos esquecestes de que nós, eu e
minha igreja, já realizamos em grande parte essas modificações, graças à
perspicácia e sagacidade dos nossos eminentes teólogos, desde a Idade Média até
nossos dias.
Entretanto, não focalizamos ainda
devidamente, na presente assembléia, o ponto central do qual depende todo o
resto. Ninguém ignora que vivemos na época do capitalismo triunfante. Nada se
faz sem dinheiro. Não são os governos que decretam ou fazem cessar as guerras a
que vos referistes – são os magnatas das finanças, são os grandes capitalistas.
Sem eles, não haverá guerra; quando eles quiserem, a guerra cessará. São eles
que fabricam as armas são eles que alimentam os combates.
Ora, o Nazareno não compreende
sequer o abc do capitalismo. Se o deixarmos entrar em nosso mundo moderno, vai
proclamar de novo, como já fez ver, os princípios obsoletos do primeiro século.
Vai, por exemplo, repetir oque disse naquele tempo – “Dai de graça o que de
graça recebestes!” “Não leveis nem ouro nem prata em vossos cintos!” “Não
podeis servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro!”
Durante os três primeiros séculos
que se seguiram à morte do Nazareno, os discípulos dele tentaram realizar essa
infeliz filosofia espiritual – e todos sabem que acabou em desastre e fracasso
total. A igreja cristã, em vez de dominar o mundo, vivia perseguida e teve de
refugiar-se debaixo da terra, às catacumbas, sem o direito de respirar o ar
livre de fora nem ver a luz do sol. Será isto que se chama o triunfo do reino
de Deus?
Felizmente, em princípios do
quarto século apareceu o grande libertador, o imperador Constantino Magno,
fundador e patrono da nossa igreja. Tirou dos subterrâneos de Roma a igreja
mendiga e anônima e fez dela a maior potência política e financeira dos
séculos. Colocou os seus chefes nos altos pináculos da administração pública,
deu-lhes prestígio social e político, poder financeiro e militar – e a igreja
compreendeu que era muito melhor dominar do que sofrer, melhor perseguir seus
inimigos com as armas na mão do que ser por eles perseguida e trucidada. Foi
com isto que começou o triunfo do reino de Deus sobre a face da terra. Desde o
tempo de Constantino Magno, através de Carlos Magno (século VIII) até Gregório
Magno (século XIII), os meus predecessores foram de triunfo em triunfo, até se
tornarem senhores únicos do mundo religioso e civil da Europa. Depois desse
tempo, em virtude de idéias heréticas que surgiram, perdemos o nosso poder
militar e parte do nosso prestígio político; já não podemos organizar Cruzadas
e guerras religiosas contra os infiéis; até nos foi proibido lançar às
fogueiras do Santo Ofício os hereges impenitentes. Entretanto, por vias
travessas, reconquistamos o poder mundial, dominando as consciências humanas
com ameaças de eterna condenação, e, graças a esse domínio moral das almas,
conseguimos dominar também os corpos e reconquistamos vasto prestígio nos
setores da política e das finanças internacionais. Basta dizer que os meus
embaixadores estão em todos os países do globo e gozam de extraordinárias
regalias. Em tempos antigos, os teus discípulos, ó Nazareno, procuravam ser
“simples como as pombas”, como
dizias na tua linguagem poética;
nós preferimos cumprir a outra metade do teu ditado, sendo “sagazes como as
serpentes”.
Ora, nada do que fizemos teria
sido possível sem o prestígio político e o poder do dinheiro. Disseste, Jesus,
que ninguém pode servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro – nós desmentimos
a tua filosofia unilateral e provamos, pelos fatos, que é possível conciliar
esses dois senhores, e que esse congraçamento das coisas de Deus e das coisas
de César promove muito mais a causa sagrada do cristianismo do que a tua
ingênua filosofia irrealista. Basta dizer que o nosso clero, por meio das
funções sacramentais e da liturgia eclesiástica, em geral, colhe diariamente,
no mundo inteiro, cerca de 500 milhões de dólares, para fins religiosos e
caritativos – e outros que não interessa especificar. Para o recente Congresso
Eucarístico Internacional celebrado numa das capitais da América do Sul
arrancamos aos cofres públicos e ao bolso dos nossos fiéis mais de um bilhão de
cruzeiros, dos quais gastamos uns 40 milhões na organização do Congresso, e
ganhamos o lucro líquido do resto. Imagina, Jesus, quanto nos rendem sem cessar
aquelas tuas benditas palavras: “Isto é o meu corpo, isto é o meu sangue”! E
que desastre seria para as nossas finanças se o povo deixasse de crer piamente
na tua presença real sob as aparências de pão e de vinho! Que seria do nosso
clero se não fizesse o povo crer no milagre diário da transubstanciação, do
qual nós possuímos o monopólio exclusivo!... Felizmente, os nossos teólogos têm
meios e modos para impedir semelhante desastre...
Por isso, Jesus, não venhas agora
arruinar os nossos negócios com a proclamação dos princípios que figuram no teu
Evangelho. Teu distinto discípulo, Iscariotes, adivinhava obscuramente o que
nós, hoje em dia, sabemos com meridiana clareza; por isto quando, na sua
clarividência, viu fracassar o teu idealismo imprático, ele, homem prático,
quis salvar ao menos o que ainda se podia salvar. Aquelas trinta moedas de
prata que ele ganhou com a sua perspicácia político-financeira podem ser
consideradas como a primeira contribuição para esse gigantesco acervo de
valores econômicos que a igreja cristã possui em nossos dias, valores sem os
quais o triunfo do reino de Deus entre os homens não passaria de um sonho vão.
As massas ignaras, é verdade,
continuam a considerar o cristianismo como um ideal puramente religioso – e
convém seja mantida essa ignorância das massas – foi com este fim que
instituímos o Imprimatur dos livros, as penalidades e excomunhões
eclesiásticas. As massas amorfas não estão em condições de acompanhar a marcha
da evolução das coisas. A igreja somos nós, os chefes hierárquicos, a igreja
docente – as massas são apenas a igreja discente, como que um apêndice inerte e
passivo.
E, pois, conselho de amigo bem
intencionado, Jesus, que não voltes a proclamar os teus velhos princípios
antieconômicos. Do contrário, nós, os
chefes responsáveis da igreja
cristã, nos veríamos obrigados a fazer o que os nossos colegas, os hierarcas da
igreja de Israel, fizeram naquele tempo, quando te arvoraste em revolucionário
e demolidor de instituições eclesiásticas seculares, pagando com a morte a tua
rebeldia. Sê prudente, Jesus! Não entresem nosso mundo, onde não há lugar para
ti! Deixa-nos promover sem ti, ó Cristo, os interesses do nosso cristianismo! O
nosso povo cristão – salvo raras exceções – já está devidamente imunizado
contra os assaltos do teu espírito. Quem foi vacinado com o soro da nossa
teologia eclesiástica deixa de ser alérgico ao teu espírito, ó Cristo. Verás
que nós realizaremos o nosso cristianismo muito melhor sem ti, ou contra ti, do
que contigo...
***
Houve um longo silêncio.
Estadistas e teólogos se entreolhavam, na ansiosa expectativa de que o Nazareno
dissesse alguma palavra. Ele, porém, não falou. Limitou-se a circunvagar o
olhar pelos presentes, com infinita piedade e suave benevolência. Depois
dirigiu-se à porta da sala, acompanhado pelos guardas armados. Na praça
pública, desapareceu misteriosamente como uma luz que se apaga, sem deixar
vestígios da sua passagem. No mesmo instante, todas as estações emissoras da
Capital Planetária lançaram ao espaço a notícia do fato, alertando a polícia do
mundo inteiro para que prendesse o estranho invasor, onde quer que se tornasse
visível.
Mas não consta que alguém o tenha
capturado, porque ele não se tornou visível.
***
Durante o resto desse dia e
durante toda essa primeira semana do primeiro mês do terceiro milênio,
continuaram os festejos programados, com inaudito esplendor. Durante as noites,
uma gigantesca usina atômica fornecia luz e força abundantíssimas, iluminando
os espaços com círculos concêntricos de luz multicor, cujos fulgores atingiam
um raio de dezenas de quilômetros. Propriamente, não houve noite alguma nessa
semana toda; a Capital Planetária estava permanentemente iluminada com fulgores
de claridade meridiana.
Dentro de poucos dias, o estranho
incidente com o aparecimento do Cristo parecia um sonho incerto e vago, que não
tardou a ser abafado pelas ruidosas solenidades da alvorada do terceiro milênio
da era cristã.
Falou-se muito em “redenção”. Os
oradores programados rivalizavam emexaltar as grandezas da “redenção cristã” e
a incomparável pessoa do “Re-dentor”. Mas ninguém sabia, propriamente, o que
queria dizer com essa palavra “redenção”. De que fomos remidos? Do pecado? Mas
o pecado continuava mais abundante e monstruoso que nunca. Em face desse
mistério,
acharam os oradores preferível
não descer a tamanhas profundidades, preferindo manter-se à superfície dos
interesses imediatos de cada dia e acompanhar a rotina cômoda da velha
tradição.
E assim se fez.
2. ERA PELO ANO 3000...
Acabava o sol de cortar a linha
do horizonte levantino, quando, no meio duma vasta planura, apareceu um vulto
de porte heril, vestido duma túnica branca e dum manto cinzento. Parou no
centro da planície e lançou olhares em derredor, como que à procura de alguma
coisa.
Depois, encaminhou-se a um enorme
montão de pedras, encimado por uma tabuleta, na qual se via meia dúzia de
palavras escritas em linguagem e caracteres estranhos; mas o solitário
viandante, conhecedor de todos os idiomas do mundo, logo compreendeu o sentido
da legenda. Traduzida em nossa língua, dizia:
“Ilha de Manhattan, propriedade
da Tribo Invencível”.
Mais além, havia umas palhoças, e
ao pé de uma delas estava sentado um grupo de homens seminus ocupados na
confecção e no conserto de redes de pescar.
O viandante da túnica branca
aproximou-se dos homens e saudou-os, amigavelmente na língua deles.
– Recuperamos a nossa ilha –
disse um dos homens mais idosos, que parecia ser uma espécie de chefe ou
cacique. – Segundo tradição antiquíssima, foi este ilha de Manhattan
propriedade da nossa Tribo Invencível. Até onome é da nossa língua. Mais tarde
– faz muitos séculos – nos foi ela roubada por uns invasores de cara branca,
como a tua, amigo. Mas tu não pareces vir com más intenções. Podes ficar
conosco. Agora, depois que os caras-brancas se mataram todos, uns aos outros
com aquelas horríveis máquinas de raios e trovões, voltou a ilha a ser propriedade
nossa. Infelizmente, já não é tão bela como outrora. Olha só este fundão...
O chefe apontou para um abismo
que parecia enorme cratera de vulcão extinto, e acrescentou, estendendo a mão
direita:
– Cuidado, não te aproximes! Pode
ser que o ar em derredor ainda esteja envenenado. Há séculos que foi aberto
pelas máquinas de raios e trovões dos caras-brancas, que haviam construído
aqui, por cima e ao redor da nossa ilha, uma grande cidade. Muita gente nossa
morreu com as irradiações infernais que aqueles engenhos deixaram na terra e no
ar. Houve uma invasão de maus espíritos... Para as bandas além fica o grande
rio, que os caras-brancas
chamavam Hudson, mas que agora
tem outra vez um nome decente em nossa língua.
Lenta e pensativamente foi o
homem da túnica branca andando pela ilha e arredores, imenso deserto caótico de
ruínas, entremeadas de vegetação rasteira e doentia, e rasgada de dezenas de
horrorosas crateras cheias de água escura.
Neste ponto – explicou o chefe,
apontando para uma vasta planície rochosa semeada de gigantescos blocos de
pedra – estava situado, como diziam nossos antepassados, o maior edifício do
mundo que os caras-brancas haviam erguido. Sabes ler o que está gravado aí
nesse rochedo?
O homem da túnica branca parou e
leu: Empire State Building...
***
No dia seguinte, ninguém mais
encontrou vestígio do estranho adventício. Constou, mais tarde, que, nesse
mesmo dia foi encontrado a andar tranquilamente sobre as águas do Oceano
Atlântico, rumo leste. Possuía ele o dom inexplicável de isentar o seu corpo da
lei da gravidade e transportar-se com a velocidade do pensamento a qualquer
distância.
Em certa zona do mar fez alto e
deu uma série de voltas sobre as águas, como que à procura de alguma coisa.
Finalmente, parou diante duma enorme bóia flutuante, acorrentada no fundo do
oceano. Sobre o dorso escuro da bóia estavam escritas, com tinta vermelha,
estas palavras: No fundo destas águas jazem as ruínas de Londres.
Ainda se quedava o homem da
túnica branca diante da bóia flutuante, quando viu um barco de pescadores a
pouca distância. Firmou os pés na ponta arredondada duma pedra que emergia das
águas verde-escuras e fez sinal aos homens que se aproximassem; pois eles
estavam tomados de pavor com a inesperada visão de um ser humano sobre as
águas. Com alguma relutância acercaram-se do desconhecido, que parecia ter
emergido do seio do mar. Falavam uma língua parecida com a dos lendários
vikings, de milênios idos. Pouco a pouco criaram ânimo e ousaram falar com o
vulto estranho.
– Estás visitando o lugar das
antigas ilhas britânicas? – perguntou um dos pescadores. – Será difícil
localizá-las. Ouvimos dos nossos antepassados que os engenhos da morte que
vieram dos céus da Sibéria reduziram tudo a fumaça e cinzas. Foi numa única
noite. Sobrou apenas esse rochedo em que estás. Por muito tempo ninguém mais
pôde pescar por aqui. Estava tudo envenenado. Até às costas das nossas terras
apareciam peixes tão envenenados que muitos dos nossos patrícios que deles se
alimentaram morreram.
– Um dos nossos entendidos –
acrescentou outro pescador – julga ter localizado o ponto onde, outrora, se
erguia a catedral de Westminster de que falam livros antigos; ancorou nesse
lugar a bóia que vês aí. Mas ninguém sabe ao certo se esse é o ponto exato.
***
Alguns dias mais tarde, foi o
homem da túnica branca encontrado às margens do Tibre. Procurava localizar o
ponto onde, em séculos passados, se erguera o suntuoso palácio daquele homem de
veste talar de seda branca e tríplice coroa na cabeça que em 2000 tão
eloquentemente defendera a causa do cristianismo econômico. Nada conseguiu,
porque toda a vasta área da antiga cidade das sete colinas estava coberta de
água, transformada num imenso lago. E que a foz e o leito do Tibre estavam a
tal ponto obstruídos de ruínas de casas, palácios e igrejas que as águas do
rio, represadas, se haviam espraiado muitos quilômetros fora do seu leito
natural, formando aquele vasto lago de água doce.
Mais além, à margem superior da
lagoa, avistavam-se umas casinhas singelas, habitadas por uns agricultores não
menos simples. Quando viram o homem da túnica branca convidaram-no
amigavelmente para tomar um refresco em suas casas. O peregrino aceitou o
convite.
Evocando obscuras reminiscências,
conseguiram esses lavradores reconstruir, até certo ponto, a história dos
últimos séculos. O inquilino do palácio, disseram, que se considerava único
representante de Deus sobre aterra, fora obrigado a fugir clandestinamente para
o outro lado do mar, porque homens vindos de um vasto país, ao norte da Ásia e
da Europa, invadiram a Itália e espalharam uma ideologia incompatível com as
doutrinas desse homem. Por isso, depois daqueles emissários frustrados nos seus
intentos, vieram milhares de máquinas mortíferas daquele mesmo país e arrasaram
totalmente a vetusta cidade às margens do Tibre.
– Por muito tempo – acrescentou
um dos lavradores – aquele poderoso país do norte foi senhor do mundo, daquém e
dalém-mar. O próprio fugitivo de Roma foi preso e morto no país dalém-mar aonde
fora residir. Finalmente, porém, aquele mesmo país do norte da Ásia e da
Europa, de tão rico e poderoso, foi apodrecendo no seu luxo e no seu grande
orgulho – e hoje também ele é uma ruína e um deserto, como os outros.
***
Ainda por muito tempo foi o homem
da capa branca visitando outros países e outras cidades, deste e do outro lado
das grandes águas; mas em parte alguma encontrou vestígio das glórias da
ciência e da técnica que cobriam a face da terra por ocasião da sua tentativa
de voltar ao mundo dos homens, em
princípios do terceiro milênio.
Por toda a parte, ruínas e destruição. Só nos campos encontrou homens simples,
calmos, serenos, de vida humilde e boa.
Um dia, retirou-se o estranho
viandante para uma vasta planície, não longe do lugar onde ele, diversos
milênios atrás, espalhara pela primeira vez a sua doutrina grandiosamente
humilde, humildemente grandiosa, doutrina que os dominadores do mundo não
puderam ou não quiseram compreender.
Para as bandas do leste
estendia-se um grande lago de águas extremamente límpidas e azuis, em cujas
margens se erguiam casinhas brancas e tranquilas rodeadas de sorridentes
jardins e pomares. No interior desses lares era maior ainda do que fora a
benfazeja serenidade, atingindo, porém, a culminância da sua dinâmica beatitude
nas almas dos homens que habitavam esses risonhos santuários.
O estranho vulto de túnica branca
foi perlustrando, lenta e pensativamente, essas e outras terras, auscultando o
ritmo da vida pura que pulsava através de todas as artérias dos indivíduos e da
sociedade. Não encontrou policiamento nem códigos de leis nem armas mortíferas
em parte alguma, nem outra coisa alguma que perturbasse a paz dinâmica e
exultante felicidade desse pequeno mundo.
Dirigiu-se a uma colina, e
milhares de homens, mulheres e crianças foram em seguimento do homem, que não
conheciam pelos sentidos do corpo nem pelas faculdades da mente, mas que a
afinidade espiritual das suas almas lhes revelava como seu amigo e mestre.
Sentou-se o misterioso viandante
no topo da colina e, abrindo os lábios, disse:
“Bem-aventurados os pobres pelo
espírito – porque deles é o reino dos céus.
“Bem-aventurados os puros de
coração – porque eles verão a Deus.
“Bem-aventurados os que fazem a
paz – porque eles serão chamados filhos de Deus.
“Bem-aventurados os que têm fome
e sede de justiça – porque eles serão saciados.
“Bem-aventurados os
misericordiosos – porque eles alcançarão misericórdia.
“Bem-aventurados os que andam
tristes – porque eles serão consolados.
“Bem-aventurados os mansos – porque
eles possuirão a terra.
“Bem-aventurados os que sofrem
perseguição por causa da justiça – porque deles é o reino dos céus”...
Quando o mestre terminou de dizer
estas coisas, brevíssimas e imensas, era tão grande o silêncio em derredor que
até parecia audível o jubiloso latejar de milhares de corações e o brilho de
milhares de olhos parecia iluminar as verdes campinas circunjacentes... Todos
os ouvintes tinham a impressão estranha de perceberem ecos de vozes perdidas na
vastidão dos tempos e dos espaços, vozes cujo sentido real só agora emergia das
profundezas de suas almas.
E, cansados de milênios de erros
e sofrimentos, de vãos tentames de salvação pela ciência e técnica humanas,
abraçaram em cheio a mensagem divina que brotava dos lábios e do coração do
homem da túnica branca.
Tão profunda e intensa era a
felicidade desses homens que se extravasava com irresistível veemência em
torrentes de espontânea bondade e simpatia ativa. Sentiam-se todos um só
coração e uma só alma; não havia um só indigente entre eles, porque os que
possuíam demais davam do seu supérfluo para aliviar as necessidades dos que
tinham menos.
Compreenderam todos que aparecera
no meio deles o Redentor e fizera despontar dentro deles o reino de Deus – a
realização integral do amor de Deus manifestado pelo amor dos homens.
Foi nessa gloriosa manhã de
primavera cósmica que o filho pródigo depois de ter demandado terras estranhas,
esbanjado o patrimônio da herança paterna, mendigado favores a seus tiranos e
sofrido fome e degradação no meio de imundas manadas de seres irracionais, foi
nessa manhã que ele, purificado por inauditos sofrimentos, por ele mesmo
engendrados, resolveu regressar à casa paterna – e houve grande alegria, música
e lauto festim...
E nasceu entre os homens um novo
céu e uma nova terra – a paz do Cristo no reino do Cristo.
A humanidade, cristificada,
celebrou o segundo advento do Cristo – o seu advento real, definitivo, pela
compreensão e pelo amor ativo e universal...
Foi proclamado sobre a face da
terra o reino de Deus...
Aleluia!...
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